sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Conversa e poesia.


Andorinhas

           Bruno Marcus Rangel Pessanha

Ondulações no espaço ancho
do infinito...
eu, garrancho 
de passos,
no meu cá-em-embaixo
nada bonito

Será que suas asas
me alçarão aos céus,
à divina casa,
onde estão a volitar?

Pela janela,
da poltrona macia,
sem poesia,
em que me arrancho
vejo-as, libertas, a voar
no espaço solar.

Vejo-as mas não capto
totalmente o gancho,
estético sentimento,
que existe entre mim
e o balanço delas
no firmamento, rancho 
estelar de Deus.

Será por que seu espaço é límpido,
e eu apenas mancho 
o meu? 

***  
Conversa


Mas, no entardecer de verão,  o que se falava à mesa, regada e servida de cerveja, queijinhos vários e salaminho? Qual era o tema? Sexo, piadas sobre o tema. Também, o que você, caro leitor, queria? Entre vários circunstantes, faziam parte da roda,  Ene e o casal de jovens, estes certamente em fase de muita fornicação. O assunto, pois,  não podia ser outro. Não que os dois fossem os puxadores do tema. 

Não, nada disso. O que estava por trás da insistência no assunto era a própria atratividade do tema, puxado, aliás, pela ala mais madura. O que no caso, seria uma forma de  demonstrar  que a ala mais vivida, ainda tinha lenha pra queimar (pelo menos, verbalmente), somada a intenção evidente de testar o casal de namorados, a ver a quantas andaria  a (des)inibição dos dois em abordar o assunto. 

O rapaz, louro, rosto belo, simpatia tímida e sorriso  acolhedor, era um tanto calado. Timidez talvez por estar ao lado da namorada, em lugar estranho. Bem, fiquemos assim em reconhecer a presença dele, como causa principal do sexo ser o  assunto depositado na mesa. E como animador, o dono da casa que, embora não leve muito jeito, adora contar casos picantes.
- Sabe a história... – é assim que ele sempre começa – do mineirinho que vinha com um queijo meia-cura debaixo do braço. E passa um sujeito e diz: “Quando vamos comer o redondo?” e o mineiro respondeu: “Quem vai segurar o queijo?”

Depois, rapidamente os temas mudaram para  “personal trainer”,  cuja presença é comum ao longo da calçada e dentro da praça em frente. Nela esses profissionais modernos fazem seu trabalho,  olhos atentos  aos corpos e músculos femininos,  tantas são as mulheres classe alta que ali  caminham, fazem musculação

Foi quando o blogueiro disse:
- Conheço a historinha de uma mulher malhadora que falou para o marido - Eis o “meu personal fucker”.

À palavra “fucker” todos estranharam. Forte demais? Mais do que fornicador  na nossa língua? - ele se perguntou – o que está acontecendo com os brasileiros. Até palavrão choca mais no idioma de Shakespeare? O fato é que os olhares voltaram-se para o blogueiro como ele houvesse extrapolado às medidas do decoro. Contexto em que, sentindo-se acuado, tentou explicar.
- Foi um ato falho dela. Ela queria dizer “ meu personal trainer”. 

Mas o que ele ao grupo repassara não era senão o texto, constante de uma tirinha de humor publicado em jornal,  que alguém, há algum tempo, lhe havia dado para ler. Como em matéria de lembrança, uma coisa puxa outra, por analogia ao ato falho da malhadora. outra passagem semelhante ao caso da malhadora lhe viera à mente. O blogueiro se lembrou da passagem ocorrida,  três décadas atrás, em   festinha de aniversário de uma das filhas de um amigo.  Foi assim,  o blogueiro resolveu contar: 

- Uma jovem sem-noção, como se diz hoje em dia, chamada V, amiga da aniversariante, de repente no meio da sala cheia de gente disse bem alto: “Macacos me fodam!”

De novo, os olhares convergiram  para o blogueiro. “Até onde vai esse cara? É maluco, só pode ser. Agora extrapola em português!!!”. Diante da reação de todos, e do jovem sobretudo, ainda mais estando ao lado da jovem mulher amada, que se pensa sempre recatada, o que no caso o era, porém não muito, o blogueiro, amuado, explicou-se como pôde:. 

-Foi outro ato falho, coisa que, todos vocês sabem,  Freud explica... 

E ficou nisso. Daí pra frente,  as piadas e historinhas -  sexo, expulso da temática - continuaram, só que menos apimentadas.  Uma delas, a do gênio da lâmpada e o mineirinho, ingênua demais diante do nível bocageano prevalecente  até há pouco.

 - Uma vez liberto, o gênio disse: tem direito a três pedidos. O primeiro, o felizardo filho das Minas Gerais, pede:  'Um queijo!"O segundo: "Um queijo!" E no 3º pedido, o Gênio mostrou a estranheza ao mineirinho, que meio sem graça, disse: Um carro! Mas depois,  explicou aos amigo que queria mesmo era um queijo...”. 

E a conversa terminou, com a cândida história sobre a preferência por laticínios dos  mineiros.

*** 

 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

HOMENAGEM A MANOEL DE BARROS






HOMENAGEM A MANOEL DE BARROS, o poeta das coisas miúdas, sem valia, dos anelídeos minhocando a terra, dos pássaros, das crianças e dos peixes, recentemente falecido.
Dia 22/03/2011
O Livro das Ignorãças (de Manoel de Barros)
Um dia depois que Robertão (1) esteve aqui, no seu último dia de férias, a visitar um cirurgiado de hérnias na sua longa convalescença. Sentado na poltrona, ele viu (eu e Francisca revimos) o documentário de Paulo César, sobre o Poeta do Pantanal, com depoimentos de Bianca Ramoneda, Fausto Wolff, Elisa Lucinda, Abílio, o irmão do poeta, e outros.
  1. Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.”
Como as mulatas cariocas que, com ela, carrega a abundância (de divisas) para dentro de casa, exibindo-a para turistas estrangeiros. O Rio se apresenta de marcha-a-ré aos que chegam.
  1. Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh”.
  2. ““Sofremos uma decomposição lírica até o mato sair na voz.”
Com gosto e prazer MB tropeça nos sentidos, engalfinha-se com os reinos animal, vegetal e mineral. Faz emergir deles a lava quente de poesia – contraste e surpresas.
A decomposição pós-mortem: a mais lírica.
  1. - Botar aflição nas pedras”
(Como fez Rodin, de quem Ariano Suassuna não gostava. Preferia o escultor do parque de “A Pedra do Reino”)
  1. Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios”.
Taí um bom lema para os ecologistas. Oferta de MB. Presumo, de graça.
  1. ... E no solene um pênis sujo.”
Embora as não solenes, as normais (de NR) prefiram-no limpo.
  1. ...Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.”
Mais do que empobreceu: estilhaçou a cobra de vidro.
  1. ... Estas águas não têm lado de lá.”
Daqui só enxergo a fronteira do céu.”
A terceira margem do rio, ou de tudo
Por causa da gravidade, o único lá-fora que existe é o céu, o além. Afora, os satélites incontáveis.
***
Poesia Completa, de Manoel de Barros (Editora Leya, nov/2013)
pg 18 - “Ao literato cujo fazia-lhe nojo a forma coloquial.”
pg 19 - “A vida tem suas descompensações.”
Seu Zezinho-margens-plácidas”
Maria-pelego-preto”
pg 34 - “Os Girassóis de Van Gogh”
frescura de manhã em olhos de crianças”
(Dolores Duran)
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh
Ode a Van Gogh (2)
            Bruno M. R. Pessanha
A visão trágica de quem semeia
nos campos áridos dourados mantos,
marcou seus quadros de tons de areia
e sua vida de tormentos tantos.

Tendo visões azuis e ideias santas
namorou céus marrons sem lua cheia
num mundo pardo de pedras e plantas,
onde o homem sofre e tece a sua teia.

Entre cores e gritos na garganta,
pintou o mundo deprimido e belo,
enchendo as telas de triste arrebóis...

Mas se Van Gogh te conhecesse antes,
não sofreria o drama do amarelo,
nem pintaria tantos girassóis.

Pg 34 “Sobre a aurora entrevista
no fantástico andar dos gatos”
pg 36 - “Agora sinto que estou me despedindo de alguma coisa
De alguma coisa que está morrendo dentro de mim”
(dia 13 de novembro de 2013?)
Naquela manhã dominical eu tinha vontade de sofrer
Mas sob as árvores as crianças eram tão comunicativas
Que me faziam esquecer de tudo
Olhando os barcos sobre as ondas...”
pg 38 - “Ah como eles entendem as verdades
De seus infinitos segundos.”
O Tempo 2 (3)
Bruno M. R. Pessanha
O tempo por dentro
é o meu eu por fora
(já que ignora
o que me vai no centro).
E quando agora
o tempo em contemplo,
sinto-me diminuto,
defasada hora.
Pg 68 – “A Espera”
“….
Vejo-a com o seu ocaso e o seu casaco de iodo às costas.
Vejo a erva depois crescer na pedra, e vejo, no coração,
O amor germinar como um rápido clarão na tempestade.”

Pedra e ombros. Sempre as pedras nos ombros do caminho.
O ocaso é uma pedra e uma lápide
Para alguns a lápide grande faz o ocaso mais bonito.

Pg 69 – “Noções de Rua”
“As ruas inventam os poetas que já nasceram tristes.”
.
Até que um dia chega um seresteiro, desonra uma colegial no terreno baldio”
E mais aquelas suas grades, tão roídas de ferrugens, quase me arrebentam de ternuras idiotas...”
pg 78 - “Na Rua Mário de Andrade”
….
“E Mário me diz: - Poeta,
nenhum-lugar é o melhor
lugar de um poeta chegar


Lembra Ferreira Gullar - “Em Alguma Parte Alguma” - título do seu último livro de poesia.

Pg 94 - “IX
“Meu irmão apreciava
de estar o puro entardecer
dentro de suas mãos
carregadinhas de amor.”

pg 337 - “...
“Percebi que o homem sofria por dentro de uma enorme germinação de inércia.
Uma inércia que até contaminava o seu andar
e os seus trajos”
(prosseguimento - BMRP)
...e a sua cabeça.
E tudo era produto da melancolia
esta palavra-beleza
que nasce muito por dentro
(e faz da poesia, tristeza)

pg 345 – “6
“Caracol é uma casa que anda
E a lesma é um ser que reside.”

O lema da lesma
é andar devagar
é se ir deixando
ir a algum lugar
que ela não sabe
se vai chegar.


A tartaruga quando morre
não esconde a cabeça
tampouco o pescoço
projeta-os pra fora
por não ter o pudor de morrer.


As moscas pousam muito
Até hoje não sei
o que as moscas fazem mais:
Se voam ou pousam.


Mas isso não tem importância
para as suas asinhas,
tampouco para o verão.
Minimalismo

Lavando-se, a mosca
pequenina se exibia,
nas suas asinhas toscas
o calorão que fazia.


pg 460 - “Bernardo”
“Com as palavras se podem multiplicar os silêncios”
Abismos do belo sendo,
somente os poetas sabem
que no fundo do silêncio
todas as palavras cabem.
NOTA: Os escritos entre aspas são de Manoel de Barros, em negrito são de Bruno M. R. Pessanha.
1. Roberto Augusto Soares Duarte, colega e amigão do IBGE, há mais de 30 anos, Estava sempre comigo, em minha casa e andando por aí. Morreu há duas semanas, aos 62 anos. Como vai fazer falta, meu Deus!
2 . Do livro “Poemas Redondos e Versos Desencontrados”, de Bruno Marcus Rangel Pessanha.
3 . Idem, idem.

sábado, 8 de novembro de 2014

Parceria no amor


Relacionamento moderno

O caráter ultrapassado do conceito do blogueiro sobre as mulheres é coisa antiga. Ele próprio reconhece. Mas será que a quadradice é tanta assim? Veja trecho da crítica da FSP sobre “Travessuras da menina má”, de Mário Vargas Llosa, recentemente lançado:

Se o livro tem problema é o modo antiquado com que se vê as relações amorosas, ainda se espantando com a ‘independência’ conquistada pelas mulheres. Mas, nesse sentido, Vargas Llosa, do alto dos seus 70 anos(1), está desculpado. O amor nunca foi mesmo um troço tão complicado como hoje.”

Não, o blogueiro não está reivindicando a ilustre companhia do Prêmio Nobel da Literatura de 2010 , mas julga que jamais discordou de assertivas tipo: “o companheiro ideal, hoje em dia, nem sempre é o que vive com ela, dia e noite, ‘cama-e-mesamente’” Tampouco, demonstrou por gestos ou meras palavras opor-se ao conceito emitido do eminente escritor sobre o parceiro ideal: “antes é o amigo com quem (se possa) sair e passear, fazer sexo sem obrigação – de puro prazer, só se quiser e só por amor, como bem deve ser; falar das tristezas e das alegrias, ouvir o mesmo do outro, etc. – mas vivendo cada um em sua casa.”

E, olha bem que a concordância do blogueiro não é de ocasião. É algo profundo, há muito incorporado ao seu modo de ver e sentir as coisas. Se bem – e todos hão de concordar -, que há parceiros (e não são poucos) que, vivendo juntos sob o mesmo teto, se realizam plenamente no plano amoroso.

(1) 78, atualmente. Mario Vargas Llosa é peruano, nasceu em 1936.
 
***
O escritor e o papel em branco

Esta folha diferente,
que vem da árvore da vida...
Sua brancura faz a gente
literalmente perdida.

*** 

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Sonhando com velhos marujos


Infância - Velhos marujos

Ainda na cama, no pensamento do blogueiro um pião girava. No assoalho da cabeça os versos do  poema “Varrição” rodando,  mantinham o brinquedo empinado. Suas rimas em ‘ujo’ a irem e virem, e a trapizonga que não perdia a corda. Parecia que ia parar mas voltava a girar e, chatice das chatices, sempre em ritmo rápido. E o blogueiro o querendo lento, em ritmo de acalanto materno,  doido pra voltar a dormir. Mas que nada. Só agora ele percebeu que o ritmo acelerado do pensamento não provinha das rimas mas do significado do próprio poema. Varrer tudo o que tenho escrito. Varrer e jogar no lixo, era a ordem do memorando a circular no pensamento. Ah, esses velhos marujos, Simbad da infância, varredores dos mares...

                        VARRIÇÃO

Dormindo, varri para o canto da sala
pedaços de versos sujos,
palavras ocas de sentido e fala,
cascas secas de caramujos.

Depois, no mar do sono, abri alas
entre barcos naufragados, cujos
guardiões do ouro, baús e malas,
eram esqueletos de velhos marujos.

*** 
Saudades
Saudade, pontada aguda
fisgada vinda de dentro.
Mensagem pedindo ajuda -
SOS aos quatro ventos. 

*** 
Travestida de saudade
a recordação atropela
e a gente segue viagem
montado no lombo dela. 

*** 




 


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A musa dos poetas e os canpeões do mundo


O chá da musa e a festa para os craques.

Meses finais de 1962, Cecília Meireles era a musa dos dois poetas. Para eles, pela beleza era considerada uma deusa,  estrela distante e intocável. Mas o dia em que ela tomou conhecimento da admiração, quase idolatria, convidou Mário Quintana e Egídio Squeff para um chá.

Poeta da bola, Didi que fora consagrado pela mídia como o Mr. Football na Suécia, voltara a ser campeão do mundo quatro anos depois, no Chile. De volta ao Brasil, o craque estava, juntamente com Pinheiro e Amarildo, campeões como ele, a caminho de Campos, para receber a homenagem dos conterrâneos. Banda na praça, coreto e bandeirolas, foguetório. Tudo preparado.

Enfim, os dois escritores iam encarar a Diva. Mas no peito de cada um a timidez era tanta, que resolveram ir a pé à morada da poeta maior da língua portuguesa. A desinibição viria com as passadas exigidas pelo percurso. Mas no caminho para o chá da musa, havia muitos bares. Bares e chope.

No caminho dos craques para a homenagem dos campistas havia um cabaré. Em Macaé o carro dos campeões do mundo foi interceptado. Os macaenses também se consideravam filhos de Deus, também reivindicavam o direito de homenageá-los. Nada de bandas e bandeirolas: o bordel “Água mole em pedra dura” já tinha sido reservado pelos torcedores, peito inchado de ufanismo. Mulheres e bebidas, algo muito melhor do que palavras, foguetório e panegíricos.

Chope, por que não? Quer melhor inibidor de ansiedade, melhor estimulador de coragem de pessoas tímidas? E os bares eram tantos... Poesia e boemia na alma, a parada num botequim tornou-se obrigatória. A timidez dos dois amigos – o poeta e o jornalista, ambos gaúchos - logo esvaiu-se. No seu lugar, pileque; deste ao porre, muitas saideiras... Aí, tudo foi água abaixo.   Até a lembrança do por que estavam naquele bar (o mais próximo da casa da musa), para onde estavam indo.

***
Se de tarde o chá de Cecília esfriou na mesa da espera, no dia seguinte em Campos, o tempo esquentou. Coreto, banda e bandeirolas desfeitos, os campeões do mundo foram recebido com vaias e rojões pelos campistas ofendidos. 
***

Trovinha

O mar me navega mal
sempre que vou velejar...
Sem teu amor, pedra e cal
onde meu barco ancorar?

*** 




quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Na volta do blogueiro depois das eleições, a mídia como assunto.



Depois de uma pausa para as eleições carregada de baixarias inibidoras de criatividade, vazia de debates valorizadores da democracia, o blogueiro volta.

O domínio da mídia no mundo em que vivemos é fato antigo, mas não muito. Ao longo dessas últimas décadas, cresceu desmesuradamente com as trapizongas cheia de antenas orbitando a terra, que via  mídia onipresente,  globaliza a humanidade,  como se o homem carecesse mesmo de tanta (des)informação. Mas não é a onipresença da mídia que enfada o blogueiro; o que o chateia é o quanto de imagem vem no bojo dela e a que está em toda parte,  nas paredes dos prédios, nos elevadores, nos coletivos, no meio do trânsito e, até no bolso da gente, dentro  dos   celulares. Não  dá   para aturar  tanto   bombardeio  imagético para comunicar ou vender alguma coisa. A mensagem via imagem é impiedosa, pois dispensa praticamente o pensamento. O que entra pronto e acabado pelos olhos, entra digerido.

Só que as entranhas (neurônios) do intelecto do blogueiro acostumaram-se à leitura e digestão da mensagem escrita, as suas entrelinhas sobretudo. Prato feito e mastigado lhes causa repulsa. Na atualidade, a comunicação no mundo parece mais  um imenso e contínuo vídeo-clip, em que se abusa da lente zoom. Um vem-e-vai, um vai-e-vem, que acaba por configurar um estupro da menina dos olhos.

Quer estupidez maior do que a venda de música pelos olhos? E o noticiário televisivo em que os segundos são mais importantes do que os próprios acontecimentos, tenham estes importância ou não? E andar nas ruas das grandes metrópoles, quer algo mais paulificante do que o bombardeio feérico de imagens e mensagens?

Nós, blogueiros ou não, habitantes de cidades grandes e médias, estamos ao desabrigo desse quadro horrendo de pseudo-belezas imagéticas,  dessa violência poluidora entrante pelos olhos. Um exemplo, veja o caso relatado ao blogueiro: 

De manhã, depois de uma solene brochada, o cidadão  ao abrir a porta da varanda do quarto, tem os olhos  obrigados a bater em um anúncio na lateral de um prédio e, o pior, não têm como escapar de ler a mensagem levanta-pau de um fármaco moderno. Resultado: saia-justa, ímpetos de processar anunciante e fabricante por  perdas morais e um dia ruim pela frente!
***
Uma imagem, dizem, vale por mil palavras. Com base nessa assertiva, em se tratando de um mundo bombardeado por  milhões de imagens, homem não estaria vivendo não apenas um pesadelo imagético, mas vocabular(1)? É de se concluir, então, que a babel  é muito mais complexa, tendo em vista que estaríamos sendo bombardeados por bilhões de palavras. 

*** 
(1) Submissa culturalmente ao inglês, a babel brasileira não seria bilíngue?

*** 
Uma trova (para contrabalançar a aridez do texto acima)

Abismos do belo sendo,
apenas os poetas sabem
que no fundo do silêncio,
todas as palavras cabem!

***

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Depois de uma pausa por motivo de viagem - Seresta e chope e o desespero de um desprostatado



A, ou o desespero de um desprostatado

Dia 20/04/00. Caminhando a pensar nas misérias da Terra, essa partícula do Universo, ente e concepção humanas, cuja infinitude e desencontros autodestrutivos dos seus habitantes provocam despencamentos nos neurônios dos comuns dos mortais. Caminhando a pensar nessas mazelas, quem o blogueiro encontra vindo no sentido oposto?

Na alameda sinuosa da Praça, A  vinha em sentido contrário, passos tatibitates de pernas a resmungarem, renitentes a obedecer os comandos da cabeça. Mas A, talvez para  compensar a hesitação das pernas, demonstra agilidade mental. É o primeiro a falar.

- Está caminhando? Então, me acompanha, que  minhas pernas estão devagar mas não podem parar.

O blogueiro sente o SOS explícito na fala do amigo, consciente da necessidade de, naquele momento,  acompanhar os seus  passos ainda que isso significasse quebrar o ritmo da própria caminhada. Mas o fez. Diminuiu o ritmo para dar apoio, ainda que transitório, a quem  vinha de recente traulitada hospitalar. E  quando se detém no caso de A põe traulitada nisso...                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

O transe por que A passou não foi mole, não. Tudo começou em Conservatória, “a capital mundial da seresta”. Muito chope, cerveja, entremeados de palmas e risos, a cantoria correndo ao gosto de alguém paradão numa seresta - canções antigas, violão, cavaquinho, flauta e pandeiro. Mas de repente, em plena noitada, bexiga e reto entupidos por próstata intempestivamente inchada.   Súbitas mazelas físicas que, em grau máximo, abatem qualquer macho, imagina quando o caso é de internação e cirurgia imediata, vez que meras sondas não dão conta do recado. Pois foi o que aconteceu com A.

 Desde então, não mais fim de semana com chope e  seresta... - ele mesmo é quem diz:
 - Conservatória nunca mais...

Mas A, sofrendo os efeitos da cirurgia recente, aproveita os ouvidos e os passos solidários para pôr a culpa da claudicação no andar na coluna. Desvio providencial da conversa.

E o universo e suas infinitudes geriátricas voltaram a se apequenar nas curvaturas daquela conversa arestosa, a nosomania tomando conta dos passos dos dois sessentões em plena alameda asfaltada, que corta o Campo de São Bento, o mais belo Parque da cidade.

- Isso. Mas o drama mesmo foi no Hospital...

“Pronto! Lá vem história de erro médico...” – o blogueiro todo ouvidos pensou.

- Vim de carro, voando de Conservatória... cheguei aqui, me internei no Hospital N. S. Auxiliadora. De cara, fui para o Centro Cirúrgico, anestesia, e o médico tirou a merda da próstata. Até aí, tudo correu bem. Mas, dias depois, quando foi tirar a sonda. Aí que houve a cagada médica, que até hoje não sei se devo ou não processar aquele cretino.

Nesse ponto, A deu a indefectível pausa que teima em aflorar toda vez que relata detalhes dos percalços mórbidos por que passou (o que, aliás, é o meio mais adequado para fazer a catarse das malignidades mentais que lhe pululam na cabeça), os quais o indigitado paciente sente  prazer em descrever toda vez que tem um par de ouvidos à disposição. Compensações do pé na cova.

- Você sabe, você deve saber que quando se opera a próstata, a extremidade da sonda que enfiam na uretra é uma bola inflada para tomar o lugar dela por uns tempos, para haver a cicatrização correta do local. Mas, no meu caso, eu acho que o médico esqueceu de passar um gel, alguma coisa, sei lá..., na sonda, na bola. Só sei que na hora de tirar, foi aquele desastre: o sangue começou a jorrar... Perdi litro e meio de sangue, e não sei como não endoidei de vez, ou melhor, não fui de vez...

Aí, como um céu de crepúsculo imaginei a vermelhidão daquele desastre hemorrágico, e que,  em toda conversa desse tipo, sempre descamba, em certo momento para um autoelogio. Esperei.

- ... aliás, sei: Se não sou forte, se não tenho uma cabeça boa, tinha pirado, tinha saído dali direto pro Pinel, ou pro cemitério. E diante de tanto sangue, foi aquela correria no Hospital, quarto especial, UTI improvisada, o diabo a quatro.  E o médico ainda teve o desplante de perguntar: “E aí, como está se sentindo?” “Como posso estar, doutor?  Sem sangue, doutor?” – respondi. Ia responder o quê?  Bom, tudo bem, resumindo, a coisa foi indo. Mas dois dias depois, fui dar uma cagada, que, você sabe, a gente precisa. E pronto! Sangue de novo! Quando vi aquilo, aquela vermelheira toda saindo do pinto, pensei: “Agora, não tem mais jeito: Fui.” Mas, não, a coisa logo estancou. Era resíduo de sangue que havia ficado no local vazio da próstata, produto da cagada médica, que a minha, fisiologicamente correta, só fez provocar o rescaldo hemorrágico. E o sangue saiu, escorreu livre  por fora da nova sonda... E eu, apavorado, a pensar: vai ter que ser retirada também. Mas dessa vez, correu tudo bem, a dita cuja foi retirada sem terremotos maiores no baixo-ventre. E estou aqui, como você vê, andando. Por falar nisso, onde é a rua Miguel Couto?

É aquela ali. – Apontei para a rua ao lado da igreja Nossa Senhora da Porciúncula.

A tirou um envelope da bolsa de lonita preta.

Tenho que ir a um Centro de Endoscopia.

E lá se foi, não sem antes se elogiar sua galhardia ante as provas hercúleas de sobrevida que andou enfrentando, assim como fizera por várias vezes ao longo da conversa, através das respostas “atravessadas”  dadas ao médico. Despediu-se parecendo satisfeito com  forma sarcástica com que descreveu momento recentes de sua vida, demonstrando que a autoestima, tão necessária à vida, estava voltando. O arremate da conversa veio da lembrança do que a filha lhe dissera por ocasião de sua chegada ao hospital para internação: “Papai, até que o senhor foi muito forte ao aguentar firme a viagem de Conservatória até aqui. Foram duas horas de bexiga querendo explodir."

E, no restante da caminhada, a pretensiosa estrutura curva do meu universo estético viu-se destroçada pelas grandes e sofridas miudezas humanas da conversa.


***


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A coruja ferida


A coruja de asa partida

    Entardecer do dia 27/08/1996, a campainha da casa soou. Do portão, um conhecido de M,  namorado da filha do blogueiro, comunicava a presença do espécime emplumado, representante dos rapinantes noturnos, caído no chão negro do asfalto. Coragem faltante, achou por bem não tocar, socorrer a ave. "Melhor passar a bola para os donos da casa em frente" - pensou. 

    Para ele, não havia dúvida: o dono da coruja, asa quebrada, no asfalto, é  o morador da casa em frente.

    M, que dormitava no sofá em frente à tela da TV cheia do rosto cheio do chato do Faustão, foi convocado a descer à rua, dar início a operação resgate da ave.

    Atônito, o olhar frontal, belo, sério e enigmático da coruja, nunca tinha visto tanta gente em volta. Ao ser recolhida, os comentários versaram sobre a procedência da ave. Se seria o mesmo exemplar que, ao anoitecer, pousava no galho da acácia em frente à janela, talvez para assistir ao ritual doméstico de ligação da TV sempre àquela hora.

    • - Acho que é aquela mesma.
    •  - Isso é resultado de apedrejamento, da crueldade desses moleques que passam na rua. Quebraram a asa da bichinha. Que maldade!
    • - Será que é um curiango?
    • - Não, acho que não. Não cantava “Curiango! Curiango!”, como aquelas corujas que povoavam as noites de Bertioga(1).

    J, o vizinho dono de farmácia que, com autorização do Ibama, cria animais em cativeiro em casa, a maioria constituída de aves silvestres, foi consultado sobre o traumatismo da asa da coruja e sua possibilidade de cura.

    • - Não, não sei entalar asa de coruja. Acho que deveríamos levá-la  para Dorô, da outra rua, que é veterinária, dar uma olhada – Sugeriu.

    Dorô, especializada em cães e gatos, esses bichinhos pet mais rentáveis no mundo moderno, desconversou. Resultado: nenhum socorro especializado. A pobre da coruja, então, foi posta em gaiola, ficou por 3 dias na casa de M, e morreu.

    Antes, porém, do óbito ornitológico, o bombardeio de propagandas televisivas levou M a externar a sua vontade de comprar uma coleção de livros, relançada à venda em bancas de jornal.

    • - Estou pensando em comprar essa coleção “Os Pensadores”. Dizem que é muito boa.
    • - E é mesmo. Aqui em casa já tem. – F responde.
    • - Por que você está pensando comprar “Os Pensadores”, M? Será que é influência da coruja que está passando alguns dias na sua casa? - o blogueiro pergunta - O olhar das corujas, além de prestar atenção,  significa   que elas  estão sempre "a pensar".


      (1) Cidade praiana de São Paulo, onde o blogueiro possuiu uma casa, em um loteamento que nunca foi pra frente.


                                                           ***